Como afundar uma escola de Engenharia



conferência e debate, ISEP, 31 de Janeiro de 2001
encontro "Que Matemática numa Escola de Engenharia?"
publicado no Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, 2001
Isabel S. Labouriau



 
  • Uma receita infalível usando o ensino de Matemática.
  • Porque a receita funciona.
  • Exemplos de escolas de Engenharia que são um sucesso (e portanto que não usaram a receita).
  • O que há de comum entre os exemplos.
  • Receita para não afundar: 
  • Receita para afundar a escola

    Tempo de preparação : menos de 10 anos
    Ingredientes:
    1) professores de Matemática que saibam de Matemática aquilo que vão ensinar ou pouco mais
    2) professores de Matemática cujo interesse principal não é Matemática
    3) pós-graduação e licença para investigação muito difíceis
    4) professores que tenham estudado, todos, no mesmo lugar
    5) ter como critério de contratação dos docentes "foi meu aluno ou colega"
    6) turmas muito grandes
    7) programas vagos ou inexistentes
    8) ensinar apenas como se faz e não porque funciona
    9) disciplinas sem pré-requisitos
    10) taxas de reprovação altas sem alteração nas disciplinas
    11) todos os professores da escola que usam Matemática dão aulas de Matemática 
    Instruções:
    Escolha pelo menos 3 ingredientes da lista e aplique-os inexoravelmente até a receita estar pronta. Sabe-se que está pronto porque os demais ingredientes começam a aparecer espontaneamente. Nesta altura a escola já terá afundado embora nem todos notem logo. 

    Porque a receita funciona

    Para compreender a receita basta uma análise de como os ingredientes interagem. Analisando-os por ordem:

    1) professores de Matemática que saibam de Matemática aquilo que vão ensinar ou pouco mais
    Assim que apareça um desenvolvimento novo de Engenharia, usando um tipo um pouco diferente de Matemática, estes professroes estarão imediatamente desactualizados. Um professor que saiba pouco mais que os alunos procura manter os programas sempre iguais (causando um aumento do ingrediente 7) e só pode apresentar os temas de uma maneira. Estes professores sofrem também dos mesmos males e consequências do ingrediente 2.

    2) professores de Matemática cujo interesse principal não é Matemática
    A resistência à mudança é ainda maior se o interesse principal do professor não for o assunto que ensina. O conhecimento de outros assuntos não substitui o conhecimento aprofundado do que se ensina, mas cria uma tendência para deixar de explicar porque (ingrediente 8).
    Para estes professores, dar aulas de Matemática é uma chatice e os alunos vão se aperceber disto. Causam um aumento dos ingredientes 6, 8 e 10. Criam um mau ambiente de trabalho e com isto aumentam 1, 2, 3 e 4.

    3) pós-graduação e licença para investigação muito difíceis
    A melhor maneira de garantir que os professores não saibam muito é impedí-los de aprender. Claro que isto não é possível, mas consegue-se uma boa aproximação tornando a pós-graduação e a investigação tão difíceis quanto se possa. Com isto aumenta o ingrediente 1 e em geral também o 5. Além do mais, as pessoas que têm vontade de fazer um ensino bem feito vão embora.

    4) professores que tenham estudado, todos, no mesmo lugar
    Se todos os professores tiverem estudado no mesmo lugar ou tiverem sido alunos uns dos outros a possibilidade de inovação diminui muito. Têm exactamente as mesmas ideias e qualquer flexibilidade no sistema está impedida por natureza. Pensam e reforçam uns nos outros a idéia de que só há uma maneira de ensinar. Este ingrediente causa logo um aumento em 4, 5 e 7. Combinado com taxas de insucesso altas e programas vagos este é um ingrediente de peso.

    5) contratar quem "foi meu aluno ou colega"
    Este ingrediente causa rapidamente um aumento de 4. A partir daí aumentam 1, 2, 3 e 7.

    6) turmas grandes
    Porque será que as pessoas aceitam tão bem que conduzir um automóvel, que é fácil, se aprenda em aulas indviduais e que Matemática, que é difícil, se aprenda em aulas com 200 alunos? Os ingredientes 6 e 10 fazem um belo exemplo de ciclo vicioso.
    Fica difícil ensinar seja o que for nesta escala, a menos que se adopte técnicas especiais. Em vez disso, a tendência é aumentar 8.

    7) programas
    Um programa que conste de títulos de assuntos como "integrais", "séries" ou "diagonalização" garante que os alunos nunca aprendem aquilo que vão usar. O melhor mesmo é deixar de ter programa e ficar pelo título das disciplinas, não vá o professor acertar sem querer. Cada docente interpretará de forma diferente a informação que lhe é dada, não se sabendo assim o que é que os alunos vão aprender. Os alunos também não saberão o que é esperado deles, fica claro para eles que Matemática é um conjunto de regras arbitrárias, aplicadas por razões arbitrárias. Fica difícil a Matemática ser útil para alguma coisa.
    Este ingrediente é muitas vezes um sintoma de que está presente o ingrediente 4. Causa aumentos directos em 6 e 10, e indirectamente aumenta todos os outros.

    8) como, mas nunca porque
    Ensina-se Matemática não só para que os alunos conheçam certos factos mas principalmente para que aprendam uma maneira de pensar. Para isto não basta ter professores que saibam usar Matemática, é preciso professores que sejam capazes de criar Matemática nova, o que não é tão fácil assim! Aprender sem explicação os factos acumulados em 2500 anos de raciocínio torna o assunto misterioso e difícil, causando o aumento dos ingredientes 10 e 6.
    Como agora a Matemática é ensinada assim no secundário, torna-se particularmente importante que não seja ensinada assim numa escola de Engenharia.

    9) disciplinas sem pré-requisitos
    Os alunos reprovados continuam tranquilamente o seu curso. Como não sabem Matemática, não a podem usar quando é preciso. Isto causa reprovações nas demais disciplinas de Matemática, aumentam 10 e 6. Nas disciplinas de outros assuntos aumenta também a reprovação, os professores são obrigados a ensinar Matemática dentro de cada discipina. Aumentam 1 e 2. Instala-se o clima de "isto não serve para nada", aumentam os ingredientes 7 e 8 e em consequência os 6 e 10. Com este ambiente de trabalho o jeito é aumentar os ingredientes 1, 2, 11 e 3. Por causa do ingrediente 11 os programas ficam cada vez mais confusos (ingrediente 7).

    10) taxas de reprovação altas sem alteração nas disciplinas
    Criam um aumento de 6. Os alunos acumulam-se em algumas disciplinas e para evitar isto a tendência é aumentar 8 e 9. Como é preciso dar aulas a muitos alunos, aumentam 1, 2, 3 e 11.

    11) todos os professores da escola que usam Matemática dão aulas de Matemática; ou pior ainda, todos os professores da escola que gostam de Matemática dão aulas de Matemática
    Estes professores são em geral ingredientes 1 e 2. Com um pouco de sorte, são também 4 e 5. Este não é o problema mais grave.
    Os alunos nunca mais irão aprender como usar Matemática para fazer Engenharia - os professores que poderiam ensinar isto estão ocupados com aulas de Matemática. Não irão aprender porque os métodos de Engenharia funcionam - nas aulas de Engenharia aprenderão receitas sem explicação, porque esta envolve sempre um bocado de Matemática. Estes alunos estarão desactualizados pouco tempo depois de acabar o curso e terão enormes dificuldades em se actualizar.

    Efeito de interacção
    Os 3 últimos ingredientes formam uma combinação explosiva. Os alunos reprovados continuam seu curso tranquilamente, com professores que não usam Matemática (todos os que usam estão ocupados dando aulas de Matemática). Instala-se o clima de "isto não serve para nada", aumentam os ingredientes 7 e 8 e em consequência os 6 e 10. Os alunos ficam "presos" pelas disciplinas de Matemática, aumenta-se 8 e 9. Com este ambiente de trabalho o jeito é aumentar os ingredientes 1, 2, 11 e 3. As pessoas que têm vontade de fazer trabalho bem feito procuram outro emprego. Por causa do ingrediente 11 os programas ficam cada vez mais confusos.
    O afundamento já está completo. Os alunos não aprendem nem Matemática nem Engenharia. Talvez aprendam a decorar sem entender e a copiar. 



    Escolas de Engenharia que não afundaram

    Escolhí alguns exemplos de sucesso (e portanto que não usaram a receita) para observar. O critério usado foi escolher escolas que conhecí inicialmente como escolas de Engenharia e que são famosas como escolas de Engenharia. Procurei diversificar a escolha por países e tradições diferentes. Incluo alguns dados gerais para cada escola, que mostram as grandes diferenças entre elas.
    Uma parte das diferenças é ilusória. Por exemplo, as escolas contam o seu corpo docente de maneira diferente: em algumas são contados os assistentes, em outras são considerados pessoal temporário que não pertence ao corpo docente. Em algumas escolas os assistentes não são contados para o número de professores mas, na mesma escola, são contados quando se faz a relação docente/aluno.
    Um passeio pelas páginas de internet permite ter uma boa idéia de como estas escolas funcionam. Incluo os endereços. Na página do MIT, há uma listagem bastante completa de sites académicos de todo o mundo (http://web.mit.edu/afs/athena.mit.edu/user/c/d/cdemello/www/univ.html)
     
  • MIT (Massachussets Institute of Technology) (E.U.A) (http://www.mit.edu/)

  • Tem cerca de 10.000 alunos, 11 prémios Nobel e cerca de 60 docentes no Departamento de Matemática.
    Tem cerca de 1 professor de Matemática para cada 40 professores.
    A relação geral aluno / docente é de 4.3 / 1; tem 1 aluno de graduação para cada 1.5 de pós-graduação.
  • CalTech (California Institute of Technology) (E.U.A) (http://www.caltech.edu/) fundada em 1891

  • Tem cerca de 2.000 alunos, 28 prémios Nobel (12 professores e 14 ex-alunos - um mesmo professor ganhou dois prémios Nobel) e menos de 20 professores no Departamento de Matemática.
    Tem cerca de 1 professor de Matemática para cada 14 professores.
    A relação geral aluno / docente é de 7.2 / 1; tem 1.2 aluno de graduação para cada 1 de pós-graduação.
  • École Polytechnique (França) (http://www.polytechnique.fr/) fundada em 1794

  • Embora seja uma das "grandes écoles" a que se acede ao fim de dois anos de preparatórios após o secundário, de cada 20 artigos publicados por ano, um é de Matemática.
  • Imperial College (G.B), (http://www.ic.ac.uk/) fundada em 1907

  • Tem cerca de 9.500 alunos, 14 prémios Nobel, 1 medalha Fields e cerca de 60 docentes no Departamento de Matemática. Inclui uma escola de Medicina, também famosa.
    Tem cerca de 1 professor de Matemática para cada 70 professores.
    A relação geral aluno / professor é de 8.4/ 1; tem 7 alunos de graduação para cada 2 de pós-graduação.
  • Escola de Engenharia de São Carlos - USP (Brasil) (http://www.eesc.sc.usp.br/eesc/) fundada em 1952

  • Tem cerca de 6.000 alunos e cerca de 35 docentes no Departamento de Matemática.
    Tem cerca de 1 aluno de graduação para cada 1 de pós-graduação.
  • Instituto Superior Técnico (Portugal) (http://www.ist.utl.pt/) fundado em 1910

  • Tem cerca de 6.000 alunos, e cerca de 60 docentes no Departamento de Matemática.


    O que há de comum entre os exemplos de sucesso, quanto ao ensino de Matemática

    Os números acima, embora muito incompletos, mostram que as instituições são muito diferentes. Todas elas têm em comum as seguintes características:
    investem em ter professores de Matemática de alta qualidade (como nos outros assuntos);
    investem em investigação e em pós-graduação, em todos os assuntos que ensinam (inclusive em Matemática).
    Como resultado
    Todas estas escolas têm excelentes grupos de investigação em Matemática. Os assuntos de investigação são de interesse para a comunidade Matemática internacional. Muito do trabalho de investigação em Matemática feito nessas escolas não está directamente ligado ao assunto principal de interesse da escola, mas é de alta qualidade.
    A dimensão dos departamentos de Matemática e a sua proporção dentro das escolas varia muito. Em todos os casos, os departamentos de Matemática têm dimensão suficiente para manter grupos de investigaçã visíveis internacionalmente.

    O que todas estas escolas tentam ter é um grupo de professores capaz de dar aos seus alunos um treinamento básico de alta qualidade. Citando a página de uma delas: "profs can launch into advanced material immediately, without the need to review basics for some underprepared students." "People who only know Caltech's reputation in [...] engineering are often pleasantly surprised ... " (Caltech, página sobre "core curriculum").

    Resumindo: o que há de comum entre as escolas de sucesso, seja em escala mundial, seja em escalas nacionais, é uma política de qualidade em todas as áreas de actuação. Naturalmente isto inclui uma política de qualidade no ensino da Matemática. 


    Receita para não afundar


    Escolas de Engenharia de sucesso já existem há muito tempo. O melhor é não tentar inventar a roda - escolha algumas escolas excelentes e procure ver como elas resolveram o problema. É melhor não ser modesto. Porque não tentar ser como os melhores do mundo? Invista em qualidade. 


    Alguns ingredientes para o sucesso do ponto de vista de ensino de Matemática:

    1) decida o tipo de profissional a formar
    Isto irá condicionar toda a estrutura do curso - em particular, quanta e qual Matemática será necessária. Lembre-se: um profissional competente é capaz de manter-se actualizado e para isto precisa saber porque e como os métodos funcionam.

    2) programas objectivos, preparados por equipa interdisciplinar
    Um programa objectivo é uma lista de actividades que o aluno deve ser capaz de realizar; não é uma lista de nomes de capítulos. Por exemplo não basta dizer que o programa deve incluir o estudo de séries, é preciso dizer o que o aluno precisa saber sobre séries: determinar se convergem? demonstrar que convergem? estimar a sua soma? demonstrar que a soma é esta? determinar a rapidez da convergência? para quais classes de séries?
    Este tipo de programa é muito mais difícil de preparar do que parece. Tem necessariamente que ser feito em conjunto pelos professores que vão usar a Matemática em disciplinas a seguir (incluindo as de Matemática) e pelos professores que vão dar aulas da disciplina. Tem que conter um bom compromisso entre a capacidade de resolução prática de problemas e o treinamento em raciocínio e em rigor Matemático, que é o que permite aprender mais sempre que necessário.
    A tarefa de quem prepara o programa pode ser facilitada escolhendo um bom livro de texto. Matemática é ensinada em escolas de Engenharia há 200 anos, há uma boa quantidade de experiência acumulada que se pode aproveitar. Não é preciso ser original nisto para ser competente.
    Os programas devem ser revistos regularmente por dois motivos. Primeiro, para mantê-los actualizados em relação às necessidades de outras disciplinas. Segundo, para que os professores de Matemática e das disciplinas que a usam se mantenham conscientes da interligação entre os programas e tirem partido dela.

    3) cuidado com as taxas de reprovação
    Uma taxa de reprovação alta em disciplinas de base tem as consequências perniciosas que já foram explicadas. Ela é um sintoma. A causa, em geral, é uma mistura de preparação indadequada dos alunos, programas demasiado ambiciosos e métodos de ensino inadequados. Há muitas soluções que já foram usadas e testadas.
    Aulas remediais para repetentes funcionam pior do que oferecer-lhes a possibilidade de fazer a disciplina em mais tempo com mais apoio. Isto pode ser feito, por exemplo, dando aos repetentes a possibilidade de fazer em um ano o programa de uma disciplina semestral acompanhado de revisões dos pré-requisitos feitas à medida que vão sendo usados.
    Para alunos com dificuldades, um sistema de avaliação com resposta mais frequente permite corrigir a tempo problemas que só seriam descobertos tarde demais. Isto só é útil se houver apoio para resolver as dificuldades à medida que aparecem.
    Há muitas outras maneiras de atacar o problema. Todas elas envolvem trabalho adicional durante algum tempo, que acaba por ser compensado pela diminuição dos alunos acumulados. Para investir em qualidade é preciso buscar os meios, mas é muito mais fácil obtê-los quando se tem um projecto bem estruturado.

    4) estimule professores que sabem muita Matemática a dar aulas da sua especialidade, usando muita Matemática
    Assim os alunos aprenderão não só a Matemática como a maneira específica de usar Matemática dos assuntos que estudam (coisa que um matemático não lhes poderá ensinar). Por exemplo: o conceito de valores próprios e os métodos básicos para calculá-los devem ser ensinados em disciplinas gerais de Matemática. A maneira de usar valores próprios para extrair conclusões varia de uma aplicação para outra. Em certos assuntos utiliza-se matrizes com propriedades especiais para as quais há técnicas especiais que simplificam o cálculo. Estas interpretações e estas técnicas devem ser aprendidas juntamente com o assunto em que são usadas, o que será fácil para quem já tem a formação geral.
    Escolher só uma destas maneiras de ensinar é uma perda para os alunos. No exemplo dos valores próprios, um aluno que só aprenda métodos gerais terá dificuldade em realizar cálculos específicos em certos assuntos. Um aluno que só aprenda os métodos específicos não só perderá a oportunidade de aprender que valor próprio é um conceito geral que se aplica a muitos problemas diferentes, como perderá também a oportunidade de lidar com o conceito abstracto de valor próprio o que é um bom treino de raciocínio.
    A aprendizagem é um processo cumulativo que beneficia de alguma repetição. Um aluno aprenderá mais e melhor se estudar o mesmo assunto em várias disciplinas diferentes em que será apresentado de pontos de vista diferentes.

    5) invista na formação docente
    Não é possível fazer ensino de qualidade com professores ignorantes, por melhor que seja a sua pedagogia.

    6) contrate professores de Matemática que saibam mais Matemática do que vão ensinar
    Um professor que sabe muito mais do que o que ensina é capaz de vários níveis de explicação. É uma pessoa que participa sem dificuldade de uma equipa interdisciplinar para discussão de programas. É uma pessoa que não tem dificuldade em enfrentar uma mudança de programa: ou já sabe o assunto novo ou o aprende com facilidade.

    7) contrate professores de Matemática que que dêem garantia de actualização, isto é, que fazem investigação mesmo que esta "não sirva para nada"
    A história da Matemática está cheia de exemplos famosos de assuntos considerados inúteis que se revelaram depois utilíssimos. Mas mais importante que isto, é que fazer investigação é uma garantia de capacidade. Quem investe em qualidade quer contratar as pessoas mais competentes.

    A única coisa que não serve mesmo para nada é a ignorância. Ou pior: serve para nos tornar dependentes dos outros que não são ignorantes.