Princípio da Equivalência

Introdução












Um observador que vê um objecto mover-se segundo uma trajectória curvílinea (não rectilínea) dirá que isso acontece porque, de acordo com a lei de Newton, existe uma força que actua sobre esse objecto.

Suponhamos, no entanto, que um outro observador olha para o mesmo objecto e vê que este se desloca segundo uma trajectória rectilínea, com velocidade uniforme, e que, portanto, novamente de acordo com a lei de Newton, não está sujeito à acção de qualquer força.

Será isto possível? E quem tem razão? Será possível que dois observadores distintos possam discordar àcerca

(i). da trajectória ser rectilínea ou curvílinea e
(ii). àcerca do facto do objecto estar ou não sujeito à acção de uma força exterior?

Vejamos um exemplo concreto:


Exemplo
Vejamos o que acontece quando um referencial não inercial $ {\mathscr{R}}'$ , se move com aceleração constante e igual a $ g$ , relativamente a um referencial de inércia $ {\mathscr{R}}$ .

Suponhamos que o movimento se faz ao longo do eixo dos $ zz$ e que os restantes eixos se mantêm sempre paralelos. A relação entre as coordenadas dos dois referenciais é dada por:

$\displaystyle \left\{\begin{array}{lll} t'&=& t \\ x'&=& x \\ y'&=&y \\ z'&=&z-\frac{1}{2}gt^2 \end{array}\right.$ (5)

Por favor habilite Java para uma construção interativa (com Cinderella).


Supômos que não há efeitos relativistas, de tal forma que, $ t'=t$. Consideremos agora uma partícula livre (ou um raio de luz) que se move com velocidade constante $ v$ , no plano $ y=0$ , paralelamente ao eixo dos $ xx$ no referencial de inércia $ {\mathscr{R}}$ .

De facto:

$\displaystyle \left\{\begin{array}{lll} x&=& vt\\ y&=&0\\ z&=& a\end{array}\right.$ (6)

onde $ a$ é uma constante. Portanto:
$\displaystyle \left\{\begin{array}{lll} x'&=& vt' \\ y' &=&0\\ z' &=&a- \frac{1}{2}gt'^2 \end{array}\right.$ (7)

que é a parábola de equação $ z'=a-kx'^2$ no plano $ y'=0$ do referencial $ {\mathscr{R}}'$ , onde $ k=\frac{g}{2v^2}$ . Portanto, quando obervada no referencial $ {\mathscr{R}}'$, a partícula segue uma trajectória parabólica.



Suponhamos que um astronauta $ {\mathcal{O}}'$ está numa cápsula espacial, várias dezenas de kms acima da superfície terrestre, em queda livre. Um observador $ {\mathcal{O}}$ está em terra e vê o comportamento de $ {\mathcal{O}}'$ através de um telescópio.

Figura:  Um astronauta numa cápsula espacial, várias dezenas de kms acima da superfície terrestre, em queda livre.
\begin{figure}\begin{center}\framebox{\epsfysize=8cm \epsfxsize=12cm


$ {\mathcal{O}}$ está em repouso na superfície da terra, e vê $ {\mathcal{O}}'$ cair verticalmente com uma aceleração de $ 9.8m/s/s$ . Tudo o que está na cápsula espacial comporta-se da mesma forma - tudo cai com a mesma aceleração. Se, por exemplo, $ {\mathcal{O}}'$ atira uma bola para o lado, $ {\mathcal{O}}$ verá a bola descrever uma parábola, como acontece com qualquer projéctil.

Consideremos agora as sensações do astronauta $ {\mathcal{O}}'$ . Se ele quiser pôr um quadro na parede da cápsula, basta encostá-lo, não precisa de o pregar! $ {\mathcal{O}}$ compreende que assim é, porque ele vê que a parede e o quadro caiem ambos com a mesma aceleração. $ {\mathcal{O}}'$ larga uma maçã que tem na mão e vê que ela permanece suspensa no ar. $ {\mathcal{O}}$ dirá que $ {\mathcal{O}}'$ e a maçã caiem lado a lado. Quando $ {\mathcal{O}}'$ atira uma bola, ele verá a bola deslocar-se em linha recta até colidir com a parede da cápsula, embora $ {\mathcal{O}}$ veja a bola descrever uma parábola. $ {\mathcal{O}}'$ pesa-se numa balança a bordo e vê que o seu peso é zero!

Todas estas experiências convencem o astronauta $ {\mathcal{O}}'$ de que ele está em repouso, num espaço livre de qualquer atracção gravitacional, enquanto que $ {\mathcal{O}}$ continua convencido que $ {\mathcal{O}}'$ cai num campo de forças uniforme.

Para reconciliar estes dois pontos de vista, $ {\mathcal{O}}'$ escolhe um referencial ligado à cápsula, enquanto que $ {\mathcal{O}}$ escolhe um referencial ligado à terra. Estes dois referenciais movem-se um relativamente ao outro com aceleração linear constante. As consequências imediatas deste facto são

 (i). aquilo a que $ {\mathcal{O}}'$ chama uma recta, $ {\mathcal{O}}$ dirá que é uma curva,
 (ii). uma região que $ {\mathcal{O}}'$ declara que está livre de qualquer atracção gravitacional, $ {\mathcal{O}}$ dirá que está sujeita a um campo gravitacional uniforme.

 Esta relação é recíproca - $ {\mathcal{O}}'$ dirá que a terra e $ {\mathcal{O}}$ se deslocam com aceleração uniforme na sua direcção.

Como vimos, a teoria da Relatividade Geral proíbe que privilegiemos qualquer observador relativamente a qualquer outro. Não pode haver qualquer tipo de favoritismo. Qualquer lei da Natureza é igualmente aceitável para todos os observadores e deve por isso ter uma forma invariante que sobreviva à mudança de coordenadas correspondentes. Em particular, a situação acima descrita mostra que a força gravitacional é uma ilusão - depende do referencial escolhido. Isto não significa que se nos lançarmos do cimo de uma torre não haja consequências desastrosas! Mas Einstein nega que elas se devem à atracção que a terra exerce sobre nós! Veremos em breve qual a explicação de Einstein.

No exemplo acima, consideramos o efeito da gravitação apenas numa pequena região que, de acordo com Newton, está sujeita à acção de um campo uniforme. Vimos que, nesta situação, todos os seus efeitos podem ser neutralizados por uma mudança de referencial. A existência de um campo gravitacional uniforme, de acordo com $ {\mathcal{O}}$ , é negada pelo astronauta $ {\mathcal{O}}'$ que escolhe um referencial que se move com aceleração constante relativamente a $ {\mathcal{O}}$ . Um outro observador ligado ao seu referencial afirmará porventura a existência de um outro tipo de campo.

Uma escolha conveniente de referencial neutralizará qualquer campo gravitacional uniforme. Portanto, um campo deste tipo é artificial, uma pura invenção do observador, e não uma propriedade intrínseca da Natureza...

Einstein resumiu estas conclusões no seu Princípio da Equivalência que, numa primeira formulação, pode ser enunciado na forma seguinte:



Princípio da Equivalência [Einstein] ... 


A Física num referencial em queda livre num campo gravitacional uniforme é equivalente à Física num referencial de inércia sem gravidade.


  Por outras palavras, dentro de um referencial em queda livre, onde a aceleração cancela exactamente o campo gravitacional uniforme, não é possível detectar nem a aceleração nem a gravidade através de qualquer experiência.





Portanto, de acordo com o Princípio de Equivalência, referenciais acelerados podem ser tratados da mesma forma que os referenciais de inércia  - eles não são mais do que referenciais de inércia com gravidade. Daqui resulta também uma definição física de referencial de inércia, sem qualquer referência a algo de exterior como, por exemplo, estrelas fixas - um referencial de inércia é apenas um referencial sem gravidade.


Mais exemplos



Consideremos as seguintes situações locais:
S 1
... Uma caixa é colocada num foguetão longe da acção de qualquer campo gravitacional. O foguetão é acelerado para a frente com aceleração constante $ g$ relativamente a um observador de inércia. O observador dentro da caixa larga um corpo inicialmente em repouso e vê esse corpo cair no chão com aceleração $ g$.
Figura: Uma caixa é colocada num foguetão longe da acção de qualquer campo gravitacional. O foguetão é acelerado para a frente com aceleração constante $ g$ relativamente a um observador de inércia. O observador dentro da caixa larga um corpo inicialmente em repouso e vê esse corpo cair no chão com aceleração $ g$ .
\begin{figure}\begin{center}\framebox{\epsfysize=8cm \epsfxsize=12cm


S 2
Desligam-se os motores do foguetão de tal forma que agora a caixa desloca-se com movimento uniforme relativamente ao observador de inércia anterior. O observador dentro da caixa larga um corpo e vê esse corpo flutuar, permanecendo em repouso relativamente ao observador.
Figura: Desligam-se os motores do foguetão de tal forma que agora a caixa desloca-se com movimento uniforme relativamente ao observador de inércia anterior. O observador dentro da caixa larga um corpo e vê esse corpo flutuar, permanecendo em repouso relativamente ao observador.
\begin{figure}\begin{center}\framebox{\epsfysize=8cm \epsfxsize=12cm


S 3
... A caixa é colocada na superfície da Terra. Ignoram-se os movimentos de rotação e orbital da Terra. O observador dentro da caixa larga um corpo inicialmente em repouso e vê esse corpo cair no chão com aceleração $ g$.
Figura: A caixa é colocada na superfície da Terra. Ignoram-se os movimentos de rotação e orbital da Terra. O observador dentro da caixa larga um corpo inicialmente em repouso e vê esse corpo cair no chão com aceleração $ g$ .
\begin{figure}\begin{center}\framebox{\epsfysize=8cm \epsfxsize=12cm


S 4
... A caixa é colocada num poço terrestre e cai livremente em direcção ao centro da Terra. O astronauta dentro da caixa larga um corpo e vê esse corpo flutuar, permanecendo em repouso relativamente a ele próprio.
Figura: A caixa é colocada num poço terrestre e cai livremente em direcção ao centro da Terra. O astronauta dentro da caixa larga um corpo e vê esse corpo flutuar, permanecendo em repouso relativamente a ele próprio.
\begin{figure}\begin{center}\framebox{\epsfysize=6cm \epsfxsize=12cm


Claramente que, do ponto de vista do astronauta, dentro da caixa, as situações S 1 e S 3 são indistinguíveis, bem como as situações S 2 e S 4, de acordo com o Princípio de Equivalência que, numa segunda formulação, enunciamos na forma seguinte:



Princípio da Equivalência [Einstein] ...

"Se nos restringirmos a uma pequena região do espaço, um campo de gravitação uniforme é equivalente a um referencial que se move com aceleração linear constante, num campo livre de gravidade. Não é possível distinguir as duas situações por qualquer experiência" .

Por outras palavras, um campo de gravitação é localmente equivalente a um campo de aceleração. Um referencial acelerado e um campo de gravitação, que aponta na direcção contrária à da aceleração, são equivalentes. Não existe maneira de distinguir as duas situações!




Outro exemplo:



Eis um exemplo ilustrativo do Princípio da Equivalência, na situação simples em que temos dois referenciais, $ {\mathscr{R}}$ e $ {\mathscr{R}}'$ , cuja aceleração relativa é constante em grandeza e direcção.

Consideremos um sistema de partículas com massas $ m_1,m_2,\cdots,m_n$, interagindo umas com as outras de tal forma que cada uma delas exerce uma força sobre cada uma das restantes.

Para $ i\neq j$ , seja $ {\bf F}_{ij}$ a força que a partícula $ i$ exerce sobre a partícula $ j$ . Por simplicidade, supômos que

 (i). a força está dirigida segundo a linha que une as partículas $ i$ e $ j$ ,
(ii). é uma função apenas da distância entre elas, e
(iii). $ {\bf F}_{ij}=-{\bf F}_{ij}$ , $ \forall i,j, \ \ i\neq j$ .

Um observador $ {\mathcal{O}}$ ligado ao referencial $ {\mathscr{R}}$ usa coordenadas $ (x,y,z,t)$ para acontecimentos, enquanto que um observador $ {\mathcal{O}}'$ , ligado ao referencial $ {\mathscr{R}}'$ , usa coordenadas $ (x',y',z',t')$ para esses mesmos acontecimentos. Supômos ainda que as velocidades envolvidas são suficientemente pequenas para que seja possível uma análise não relativista. Pômos portanto $ t=t'$ e usamos a notação:

$\displaystyle {\bf x}=(x,y,z) \ \ \ \ \ \ \ \hbox{e} \ \ \ \ \ \ \ {\bf x}'=(x',y',z')$

Sejam $ {\bf x}_i$e $ {\bf x}_i'$, os vectores de posição da partícula $ i$, $ i=1,2,\cdots,n$ , relativamente aos referenciais $ {\mathscr{R}}$ e $ {\mathscr{R}}'$ , respectivamente.

Se o primeiro observador $ {\mathcal{O}}$ acredita que está na presença de um campo gravitacional uniforme, de tal forma que, relativamente a ele, todas as partículas livres caiem com a mesma aceleração, dada por um vector constante $ {\bf g}$ , então as equações do movimento são, para esse observador:

$\displaystyle m_i\frac{d^2{\bf x}_i}{dt^2}=m_i{\bf g}+\sum_{j:\,j\neq i}{\bf F}_{ij}, \ \ \ \ \ \ \ i=1,2,\cdots,n$ (8)

já que, de acordo com a segunda lei de Newton:


$\displaystyle \hbox{massa $\times$\ acelera{\c c\~ao}}\,$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \,\hbox{for\c ca
total}$  
  $\displaystyle =$ $\displaystyle \, \hbox{for\c ca gravitacional}\,+\,\hbox{for\c ca de
interac{\c c\~ao}}$  

Suponhamos que a aceleração relativa entre os dois referenciais, $ {\mathscr{R}}$ e $ {\mathscr{R}}'$ , é constante em grandeza e direcção. Mais concretamente:

$\displaystyle {\bf x}'={\bf x}-\frac{1}{2}{\bf g}t^2$ (9)

Derivando duas vezes, obtem-se:
$\displaystyle \frac{d^2{\bf x}_i}{dt^2}= \frac{d^2{\bf x}'_i}{dt^2}+{\bf g}$ (10)

Substituindo, para cada $ i$ , a equação (10) em (8), obtemos as seguintes equações do movimento, descritas agora no referencial $ {\mathscr{R}}'$ , i.e., relativas ao segundo observador $ {\mathcal{O}}'$ :

$\displaystyle m_i\frac{d^2{\bf x}'_i}{dt^2}= \sum_{j:\,j\neq i}{\bf F}_{ij}, \ \ \ \ \ \ \ i=1,2,\cdots,n$ (11)


Nota: como $ {\bf F}_{ij}$ é apenas função de $ \Vert{\bf x}_i-{\bf x}_j\Vert$, e como $ \Vert{\bf x}'_i-{\bf x}'_j\Vert= \Vert{\bf x}_i-{\bf x}_j\Vert$ , $ {\bf F}_{ij}$ é o mesmo em ambos os referenciais.


Conclusão: O campo gravitacional foi cancelado no referencial $ {\mathscr{R}}'$ . Para o observador $ {\mathcal{O}}'$ não existe campo gravitacional. O observador $ {\mathcal{O}}$ interpreta isto dizendo que $ {\mathcal{O}}'$ está em queda livre e que por isso não sente campo gravitacional. Por outro lado, $ {\mathcal{O}}'$ poderá dizer: "Não, meu caro! De facto não existe campo gravitacional. Eu sou um observador inercial e você sente campo gravitacional apenas pelo facto de que você acelera relativamente a mim!"







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